A obra “Um século de secas: por que as políticas hídricas não transformaram o Semiárido brasileiro?” (http://www.letrasambientais.com.br/sobre-livro) é um relato crítico e analítico da história de mais de 100 anos de políticas hídricas implementadas na região semiárida brasileira. A abrangência temporal da pesquisa, bem como das instituições analisadas, possibilitaram uma visão ampla dos fatores comuns às ações de mitigação dos impactos da seca durante o período.
Por que as inúmeras políticas implementadas na área semiárida do Brasil, durante mais de um século, não trouxeram mudanças significativas para a região? Qual o motivo de o fenômeno continuar tomando proporções de desastre natural, causando prejuízos generalizados à economia? Por que obras intensamente propaladas como soluções para a seca (açudagem, irrigação, perfuração de poços, Projeto de Integração do Rio São Francisco, etc) não modificaram ou talvez não alterem o cenário socioeconômico da região? Em “Um século de secas”, os autores buscam na história explicações para os fatores predominantes à tradicional inefetividade das ações de mitigação dos impactos do fenômeno. Além de oferecerem uma compreensão crítica e abrangente sobre a área semiárida do Brasil, no passado e no presente, apontam caminhos e traçam estratégias político-institucionais para promover a gestão sustentável da seca, no contexto de possíveis mudanças climáticas.
A “seca do século” (2010-2016)
O livro foi escrito enquanto ocorria um dos piores eventos climáticos da história da região, denominada pelos autores de a “seca do século” (2010-2016). O fenômeno, com intensidade, abrangência e duração consideradas sem precedentes até então, teve consequências devastadoras à população, economia e governos. A começar pela severidade da crise hídrica que o Semiárido enfrentou, estando ainda suas instituições, governos e sociedade despreparados para adotarem medidas e soluções de curto prazo, em função da complexidade dos problemas dependerem de alternativas e investimentos de longa duração.
Em 2012, mais de 5 milhões de pessoas foram afetadas diretamente pela seca. Praticamente todos os 1.135 municípios que então compunham a região decretaram situação de emergência, em razão dos efeitos do fenômeno, alguns deles reconhecidos mais de uma vez nessa condição. Os impactos da “seca do século” afetaram diretamente a economia nacional, especialmente a população das metrópoles, quando houve grande redução na oferta de produtos e aumento nos preços dos alimentos.
Diante dessa recente crise hídrica na região, pouco foi feito, em termos de políticas públicas, para modificar positivamente a cultura e educação ambiental da população, em direção ao uso eficiente das águas, ações para promover a reciclagem e a dessalinização desse recurso natural, ampliação da infraestrutura hídrica da região e fortalecimento institucional da gestão.
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Crise hídrica ou falta de governança?
Quando se fala em planejamento e gestão, estamos nos referindo a um controle maior, por parte dos governos, instituições e sociedade civil, da relação entre os usos da água e a disponibilidade desse elemento natural para determinado período. É uma equação simples, relativa ao controle de entradas e saídas das águas. Ou seja, determinado setor, a exemplo da agricultura irrigada, não pode utilizar mais água do que sua disponibilidade prevista nas decisões de gestão, visando garantir os usos prioritários desse recurso natural (abastecimento humano e dessedentação de animais), sobretudo durante a seca.
No livro, a crise hídrica é discutido mais como um problema de governança do que de escassez. As instituições ligadas à gestão das águas não estão preparadas para aplicar a legislação, o que poderia promover impactos positivos no processo. Os comitês de bacias hidrográficas ainda são fóruns marcados por desigualdades de poder político, econômico e de conhecimento. A sociedade civil não está devidamente qualificada para participar do processo de tomada de decisão política sobre as águas. Os governos não parecem dispostos a abrir mão do seu controle centralizado. Essa realidade não ocorre apenas no Brasil, mas em muitos outros países, ressaltando-se suas particularidades culturais, sociais, econômicas e políticas.
Participação e tecnologias sociais: caminho para a transformação?
A partir dos anos 1990, a sociedade civil passou a participar mais ativamente da formulação de políticas para o Semiárido brasileiro. A governança participativa, prevista na atual legislação hídrica do País, é condição fundamental para se promover o uso eficiente e democrático das águas. A gestão compartilhada das águas permite que os diversos usuários desse recurso natural atuem de forma preventiva para planejar medidas para convivência com as secas.
No último capítulo do livro, os autores avaliam como organizações não governamentais do Semiárido brasileiro têm atuado na implementação de políticas de acesso à água em áreas rurais da região. Também analisam como grupos sociais específicos dos Cariris paraibanos, microrregiões mais secas do Brasil, se apropriaram do direito de participação, previsto na atual normatividade hídrica brasileira, para promover a governança democrática das águas no âmbito dos comitês de bacias hidrográficas. Por fim, mapeiam e descrevem as principais tecnologias sociais hídricas implantadas na região.
Ressaltam os avanços na descentralização dessas políticas e no acesso à água, baseados na participação social na formulação de políticas, bem como os desafios à universalização do acesso a tecnologias sociais hídricas no meio rural.
Lições do passado
A “seca do século” deixou lições importantes para que atuais formuladores de políticas hídricas elaborem medidas que fortaleçam processos adaptativos e propiciem maior capacidade de resiliência por parte da população. É necessário se investir em educação ambiental, em gestão sustentável das
O livro “Um século de secas” foi escrito pelo meteorologista Humberto Alves Barbosa, doutor em Solo, Água e Ciências Ambientais, pela Universidade do Arizona, especialista em monitoramento ambiental das secas, atualmente autor de relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC - http://www.ipcc.ch/), juntamente com a historiadora e jornalista Catarina de Oliveira Buriti, doutora em Recursos Naturais, com experiência em pesquisas e divulgação científica no Semiárido brasileiro.
A partir de um amplo levantamento documental, associado a dados climáticos, meteorológicos e séries históricas temporais, os autores descrevem os vários eventos de seca ocorridos no período, relacionando-os com as ações políticas lançadas como capacidade de resposta governamental para atenuar as consequências do fenômeno climático sobre a população mais vulnerável.
O livro está disponível para venda no link: http://www.letrasambientais.com.br/comprar
Políticas hídricas para a seca
O livro “Um século de secas” está estruturado em três fases históricas de políticas para a seca:
1) Solução hidráulica (1909-1940): aborda o processo de institucionalização das primeiras políticas hídricas implementadas pelo Estado brasileiro para atenuar os impactos da seca, por intermédio da pioneira Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS), depois Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS). Em diálogo com a História da Ciência e da Técnica, destacou-se o modo como concepções científicas específicas influenciaram a capacidade de resposta institucional dos governos frente à seca. Também foram analisados os limites da implementação dessas políticas, no que diz respeito à formação educacional dos produtores rurais e ao preparo da população para se apropriar das inovações tecnológicas. As grandes obras de açudagem e de perfuração de poços contribuíram para consolidar uma infraestrutura hídrica de armazenamento de água ainda inexistente na região. Todavia, juntamente com as iniciativas de irrigação na área seca do Nordeste, essas ações foram insuficientes para transformar o modo como a população atravessava a seca;
2) Políticas de desenvolvimento econômico (1950-1980): nessa fase, os autores destacaram a influência do economista paraibano Celso Furtado na implementação de um projeto político de desenvolvimento para a região, a partir da Superintendência de Desenvolvimento para o Nordeste (Sudene – http://www.sudene.gov.br/). Ressaltaram os limites e as contradições que marcaram a época, bem como os desafios e entraves a um projeto de transformação, por meio da proposta de industrialização da região e do acesso à água e à terra, de forma socialmente mais justa.
3) Políticas de desenvolvimento sustentável (1990-2016): essa fase teve como março legal a instituição da Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei no 9.433/97), considerada uma das legislações hídricas mais democráticas do mundo, em função de propor um modelo de gestão compartilhada, descentralizada e participativa. Os autores analisam o modo pelo qual essa política está sendo implementada na região mais seca do Brasil, apontando vários fatores limitantes à sua efetividade. A ausência de um sistema de gestão eficiente das águas, baseado no planejamento integrado, com participação social, faz com que as instituições continuassem agindo apenas em caráter emergencial, sem propiciar avanços ao uso racional e sustentável desse recurso natural cada vez mais escasso.